
CLÁSSICOS DO HUMOR: “UM CONTO DE UM TONEL”, de Jonathan Swift
Se você acha que o humor deve ter alguma função além da esculhambação em si, não leia este texto.
O escritor Kingsley Amis costumava dizer que, se não for para irritar alguém, não faz sentido escrever. Mas equeça o Amis, que eu vim falar de um outro escritor e seu livro. Guarde deste parágrafo só a frase, mesmo.
“Um Conto de um Tonel”, de Jonathan Swift, pode ser tudo menos um conto. O que justamente faz dele um dos contos mais divertidos de todos os tempos, com suas digressões e dissertações que, se por um lado destroem a essência do que chamaríamos “conto” para mostrar-se efetivamente um conto, comprovam, por analogia, que uma sátira deve ser tão destrutiva a ponto de não poupar nem a si própria. E Swift não se poupa.
E uma sátira religiosa, diga-se. Em tese, o livro propõe-se a atacar as vertentes do que se tornou a religião cristã na Grã Bretanha, e para isso utiliza a história de três irmãos, Peter, Martin e Jack – que recebem de seu pai três casacos idênticos e a missão de usá-los pela vida toda sem alterar absolutamente nada nas vestimentas. Fica claro que o pai é Deus, Peter a Igreja Católica (São Pedro), Martin a reforma protestante (Lutero) e Jack as dissidências luteranas (Jack aqui seria John Calvin, mas além do calvinismo estão retratadas as demais correntes dissidentes). Basta o pai virar os olhos para os filhos começarem a insidiosamente modificar seus casacos, colocando uma ombreira adornada aqui, um botão dourado ali, adulterando a costura, corrompendo o molde – sempre pensando em adaptar-se ao modismo corrente e, principalmente, às suas próprias conveniências.E cada um, claro, jurando estar preservando fielmente o figurino original.
A alegada razão para escrever a obra é esculhambar estas vertentes para – e por tabela – defender a Igreja Anglicana, da qual Swift chegou a deão (você leu certo), mas no fim das contas ele chacoalha a própria congregação: ao explicar o título, ele conta que o tal tonel se refere aos barris que os marinheiros, na caça à baleia, jogavam ao mar para distrair o bicho enquanto tentavam arpoá-lo. Swift associa a baleia ao Leviatã representado pelos críticos naturais de sua obra, e assume tentar distraí-los pois nem a defesa do pensamento anglicano conseguiria se sustentar. E que razão mesmo ninguém tem.
Kingsley Amis estava coberto de razão: quando Swift escreveu um conto que não era um conto para demolir tudo ao redor inclusive a si próprio e suas crenças, ele comprovou que o humor não tem outra função senão irritar. E Jonathan Swift era, sim, irritantemente genial.